quinta-feira, 27 de junho de 2013

Os Crimes contra a Administração Pública X Os Crimes Hediondos


Em resposta às manifestações sociais, o plenário do Senado aprovou ontem um projeto de lei que tipifica como hediondos a corrupção e outros crimes cometidos por funcionários públicos contra a administração, além de aumentar a pena mínima de todos esses delitos de 2 (dois) para 4 (quatro) anos. O texto seguiu para ser analisado pela Câmara dos Deputados.
A atitude do Governo ratifica o hábito que tem de relegar ao sistema penal a tarefa de guardião dos anseios sociais. Por meio do enrijecimento das penas é gerada a ideia de proteção aos interesses sociais, tema que já foi abordado em artigos anteriores.


Obviamente, que os crimes que têm sido cometidos contra a Administração Pública por seus próprios servidores devem ser rechaçados e seus autores devem ser punidos, principalmente com o afastamento de seus cargos, pois a retirada dos infratores de cargos públicos gera novas vagas a serem ocupadas por outras pessoas não corrompidas.

Esta a forma mais eficaz de se garantir uma limpeza dentro da gerência do Estado, possibilitando que façam parte dela pessoas que realmente trabalhem para alcançar os interesses da sociedade, que representam.

Assim, para proteger verdadeiramente a sociedade contra a corrupção praticada por funcionários investidos de autoridade, muitas vezes, conferida pela própria população o afastamento e a proibição de que tenham qualquer tipo de acesso à Administração Pública são medidas que devem imperar antes de todo e qualquer paliativo criado pelo Poder Legislativo para acalmar a população.

As penalidades administrativas supra citadas já existem e estão previstas pela Lei de nº 8.249 de 2 de Junho de 1.992, também conhecida com Lei da Improbidade Administrativa. Seus principais artigos são: 9º, 10, 11 e 12, sendo que os três primeiros  tipificam as infrações praticadas por servidores públicos ou por terceiros em concurso de pessoas com esses e o último prevê as penalidades para cada tipo de conduta ilícita cometida em face da Administração.

Dentre tais penalidades estão a perda de bens acrescidos ao patrimônio ilicitamente, ressarcimento do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão de direitos políticos de 3 a 10 anos, pagamento de multa calculada sobre o enriquecimento obtido de forma ilícita a depender do tipo de infração, além da perda de benefícios fiscais ou creditícios e da possibilidade de firmar contrato com a Administração.

É claro que tais punições não afastam a reprimenda do Direito Penal, já que os famigerados crimes que ensejam na diminuição do patrimônio do Estado e no enriquecimento ilícito do infrator estão tipificados no Código Penal brasileiro, em seu Título XI, que trata "Dos Crimes contra a Administração Pública".

Dentre os delitos mais frequentes estão o peculato, que representa uma apropriação indébita ou furto de dinheiro ou patrimônio estatal por aquele que está no exercício de sua função ou que permite que outrem o faça; a corrupção passiva, que consiste no aceite de promessa, na solicitação ou recebimento de quantia indevida em razão de sua função de servidor, a corrupção ativa, que é a conduta praticada por aquele que oferece quantia indevida para alcançar a satisfação de um interesse pessoal  excesso de exação, que se dá com a cobrança indevida de impostos por funcionário público.

Enfim, os crimes mencionados têm pena mínima de 2 (dois) anos, podendo ser alterada de acordo com a situação fática e as características do agente. Acredita-se que o aumento dessas penalidades para 4 (quatro) anos possa vir a inibir a prática desses delitos. Portanto, é um ponto bastante positivo do Projeto em avaliação.

No entanto, o ponto principal a ser discutido é a inserção desses tipos penais na Lei de nº 8.072/90, mais conhecida com Lei dos Crimes Hediondos.

A Primeira coisa a se entender é o que são os crimes hediondos?

Pergunta que me remete ao ensinamento do professor, doutrinador  e promotor de justiça Cleber Masson, cujas aulas tive o prazer de assistir e que certa vez, para responder à indagação contou uma história descontraída da qual nunca vou me esquecer e nem da matéria tratada.
Ele disse que: quando ingressou no curso de direito, seu pai lhe perguntou o que eram crimes hediondos? E que para a tristeza do pai ele não soube responder. Alguns anos depois, ele se formou e seu pai novamente lhe veio com a pergunta cabulosa: o que são crimes hediondos? E ele, novamente, não soube responder, o que provocou um descrédito de seu pai em relação ao curso feito por ele. O tempo se passou, e ele foi aprovado no concurso público do Ministério Público, fato que comprovava sua capacitação e sua inteligência. No entanto, seu pai lhe veio com a mesma pergunta cabulosa de sempre. Já imaginam o final da história, né? Nesse momento ele não teve outra resposta a dar, se não uma: Os crimes hediondos são os previstos na Lei dos Crimes Hediondos.

A definição do professor foi, sem sombra de dúvidas, a mais objetiva e eficiente para qualificar e explicar o  que são crimes hediondos. Isso porque não há como defini-los usando características próprias ou pré-definidas.

Apenas é possível dizer que a determinação desse tipo de crime é taxativa, ou seja, não cabe aos julgadores decidir quais são eles. Eles estão expressos no rol do artigo 1º da Lei. Veja:

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:  
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV e V);
II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine);
III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o);
IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o);
V - estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o);
VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o);
VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o).
VII-A - (Vetado)
VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998).  
Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, tentado ou consumado.
Os tipos penais acima transcritos tratam de condutas de grande reprovação social. Não foi à toa que foram nomeados de hediondos, que também significa: alarmantes, arrepiadores, assombrosos, aterrorizantes, espantosos, apavorantes.

A gravidade se dá pelo fato de que, na maioria deles, o bem jurídico infringido é a vida e os meios que lesam-na são os mais reprováveis. Apesar de alguns deles serem patrimoniais, como o de extorsão e o latrocínio, seus resultados acabam lesando o bem jurídico vida.Também entre eles estão os crimes de estupro, que ferem a liberdade sexual.

Por fim, tem-se o crime de adulteração de produtos medicinais podem vir a lesionar a integridade física do indivíduo ao ponto de o dano ser irreversível, e é esta a analogia para que esteja entre eles. No entanto, a doutrina entende que esta previsão viola o Princípio da Proporcionalidade/Razoabilidade.

Por isso, o legislador criou a Lei específica para especificar medidas diferenciadas e mais rígidas a serem aplicadas a eles, os quais também estão previstos no Código Penal brasileiro, entre os demais delitos.

A Lei dos Crimes Hediondos prevê que eles são inafiançáveis e impede a concessão de anistia, graça ou indulto ao condenado. Além disso, o acesso a benefícios penais, como a liberdade condicional e a progressão de regime, é mais rígido. 

O condenado por prática de crime hediondo deve ingressar no sistema prisional em regime mais rígido, ou seja, o fechado e somente poderão progredir para regime melhor após o cumprimento de 2/5 ou 3/5 (reincidente) da pena, e não de 1/6, como ocorre para os outros delitos.

Também a prisão temporária, cujos requisitos estão na Lei de nº 7.960 de 1.989 - dentre eles o de ser decretada apenas em fase investigativa e de ter a duração máxima de 30 dias - terá duração maior quando tratar da verificação de ocorrência desses tipos de de delitos, podendo chegar a 60 dias - "30 (trinta) dias prorrogável por igual período".

Em suma, tratam de crimes extremamente reprováveis, que infringem bens jurídicos de maior valor social e que, portanto, os autores devem usufruir menores vantagens durante o execução da pena. Além, é claro, de estarem incluídos entre os crimes de penalidades mais altas do Código Penal.

Acontece que, os crimes de corrupção, entre outros praticados contra a Administração Pública, geram grande reprovação popular, no entanto isso não ser confundido com a repugnância provocada pelos crimes hediondos.

Por certo que a intensificação das penas para aqueles tipos penais e também o implemento de medidas mais duras na fase de cumprimento de pena pode servir como inibidor e por isso essas sugestões devem ser levadas a análise pelo Congresso Nacional.

No entanto, inserir a corrupção e os outros entre os hediondos parece um atalho que destoa do Princípio da Proporcionalidade e da Lesividade (Ofensividade) que norteiam o Direito Penal.

Não seria razoável colocar lado a lado em nível de repugnância crimes que ferem bens jurídicos tão diferentes. A iniciativa de equiparar a corrupção (crime contra a Administração Pública) a crimes como o genocídio, o latrocínio, a extorsão seguida de morte seria um grande equívoco, que somente se justifica pela atitude apressada do Governo em provar à sociedade que tais delitos estão sendo reprimidos desde já por ele. (Ler artigo do Direito Penal Simbólico e o Punitivismo)

Novamente, o ordenamento jurídico na esfera penal poderá sofrer alteração, afinal de contas não possui as cláusulas pétreas constitucionais. E por sorte, que a nossa Carta Magna não pode ser tão facilmente modificada, pois caso contrário teríamos uma constante instabilidade jurídica e social.

O Legislativo age de forma desorganizada e ignora todo e qualquer princípio em busca de paliativos que acalmem a população que grita nas ruas. No presente caso não é possível entender este projeto em discussão, que nem mesmo foi reclamado pelo povo nos termos em que está sendo proposto: inserção de crimes administrativos nos hediondos.

 É fato que num processo de mudanças muitas "cabeças tendem a rolar", o problema é que no Brasil a primeira que é colocada em queche é a do Sistema Penal, com a relativização dos valores de alguns bens jurídicos que ele protege. 

A maior preocupação é que as leis alteram e com elas pode vir a ocorrer também a inversão de valores sociais, pois a sociedade caminha em sintonia com o ordenamento jurídico e vice-versa.

Espero isso que não ocorra nesse caso, pois o bem jurídico de máxima proteção deve seguir sendo sempre a vida, uma vez que sem ela não existiria nenhum outro a ser tutelado.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Discussão: Passamos por um momento muito importante na história do Brasil, em que a sociedade tem se manifestado em busca de seus direitos, que deveriam ser conferidos pelo Estados, mas que não são.

As manifestações têm reivindicado em suma: o passe de transporte coletivo gratuito, mais investimentos nas áreas da saúde e da educação e uma busca por soluções que tragam punição efetiva aos crimes de corrupção.

Sobre este último ponto, inclusive, vem sendo proposta a inserção desses tipos de crimes nos hediondos. E este será um tema a ser discutido no blog, pois é um marco do que tem se tratado aqui, como no artigo do "Direito Penal Simbólico e o Punitivismo". Em breve, publicarei um artigo sobre essa questão, que ainda será alvo de muitas discussões... A começar por aqui! Fique ligado!

Notícia: Foi arquivado ontem o Projeto de Emenda Constitucional nº 37, que buscava retirar do Ministério Público a prerrogativa de fazer investigações criminais.

A decisão foi quase unânime, o projeto foi rechaçado pela Câmara dos Deputados com 430 votos! Sendo que apenas 9 votaram a favor do projeto. É importante lembrar a importante contribuição que a participação popular teve para isso, que se manifestou de forma incansável e consistente. Parabéns ao povo brasileiro por mais esta vitória! Que continuem as manifestações que busquem garantir-lhes mais direitos e caminhos que lhes levem à justiça!!!

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Da obrigação dos avós de prestarem alimentos


No Brasil, os pedidos de pensão “avoenga” têm se tornado cada vez mais frequentes nas Varas de Família. 

Isso acontece porque muitos pais - que representam a maior parte de Requeridos nas Ações de Alimentos, que impõem o valor da obrigação - criam dificuldades para que seja conferida uma pensão devida a seu(s) dependente(s).

Alguns omitem seus reais rendimentos, outros permanecem desempregados por longos períodos na dependência de outras pessoas, sem se preocuparem com o sustento do(s) filho(s).

Em busca de garantir que os infantes alcancem seu direito à obtenção de auxílio financeiro daquele que não detém sua guarda é que, em muitos casos vem sendo requerida em juízo a inclusão dos avós paternos (na maior parte) nas ações de alimentos ou ainda vem sendo propostas estas diretamente contra esses.

Enfim, tais ações, já previstas pela Lei, têm tomado grandes dimensões na prática. E apesar de já fazerem parte do cotidiano dos Tribunais, estes têm propagado opiniões bastante divergentes sobre o tema.

Em virtude disso, muitos pontos da pensão avoenga passaram a ser questionados e surgiram diversas opiniões também doutrinárias acerca de sua aplicação. Passaremos a ver os pontos mais importantes:


I - Primeiramente, como introdução, é importante visualizar de onde vem a possibilidade de se propor ação de alimentos em face dos avós.

O direito aos alimentos está inculcado na Constituição Federal entre os direito e garantias fundamentas do indivíduo, ainda que de forma não expressa.

O maior de todos os direitos previsto pela Carta Magna é o direito à vida, garantida a sua inviolabilidade pelo artigo 5º. Depois vem o da dignidade da pessoa humana como um de seus princípios fundamentais, que está expresso em seu artigo 1º, inciso III. 

Pode-se dizer que para a manutenção da vida, a “comida” é necessária, e para a manutenção da vida digna (dignidade da pessoa humana) é necessário que a pessoa receba vestimenta, saúde, educação, recreação.

Nesse sentido o renomado doutrinador Yussef Said Cahali, em seu livro Dos Alimentos, RT Editora explica que “alimentos são, pois, as prestações devidas, feitas para que quem as recebe possa subsistir, isto é, manter sua existência, realizar o direito à vida, tanto a física (sustentação do corpo), como a intelectual e moral (cultivo e educação do espírito, do ser racional)”. 

A obrigação dos pais de prestarem alimentos aos filhos foi prevista pela Constituição Federal também de forma expressa em seu artigo 227. Veja:
 “Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

E o Estatuto da Criança e do Adolescente praticamente colou o texto constitucional, dispondo em seu artigo 4º que:                   
“Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”
                       
O Código Civil brasileiro, no artigo 1.694 e seguintes, trata dos alimentos e estabelece o seguinte:
“Art. 1.694 – Podem os parentes pedir uns aos outros os alimentos de que necessitam para viver (...)  
“Art. 1696 - O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.”

No dispositivo acima o legislador estendeu o dever de prestar alimentos para os outros ascendentes (avós e bisavós) na falta dos pais, que são os principais.

E, mais abaixo, ele ainda previu a possibilidade de serem complementados os alimentos proporcionados pelos pais, ou seja, não limitou a obrigação dos outros ascendentes somente para os casos em que os pais estejam ausentes, mas também quando estes não conseguirem cuidar do sustento do(s) seu(s) filhos(s) como se deve.
 “Art. 1.698 – Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide”. 

Apesar da previsão expressa do dever de ascendentes mais distantes prestarem alimentos, a aplicação prática dos artigos tem sido muito discutida, pois são diversas as interpretações.


II - Acerca da natureza da obrigação, vários julgados firmam entendimento no sentido de que ela é apenas subsidiária. Com isso, o dever somente poderia ser imposto aos avós nos casos de falta dos pais ou de um deles.

Essa via de raciocínio acaba servindo como filtro e gera a redução do número de propositura dessas ações, bem como a extinção de várias delas - com fulcro no artigo 267 inciso VI do Código de Processo Civil, que traz como uma das causas extintivas a falta de legitimidade das partes.

A Ministra Nancy Andrighi aclarou o esboçado pelo artigo 1.696, supra transcrito, no julgamento do Resp. nº 579.385/SP ocorrido em 26/08/04, que afasta possíveis dúvidas sobre sua aplicabilidade:

 “(...) Discute-se a responsabilidade do avô de prestar alimentos ao neto quando o genitor não tem condições de suprir as necessidades do menor. (...) Para solução da controvérsia necessário discutir o alcance da expressão 'falta' constante no referido dispositivo. Entende-se que a mencionada expressão não deve ser interpretada de forma restritiva, mas de forma extensiva para abarcar todas as situações de impossibilidade. Assim, o neto poderia pleitear alimentos do avô quando o genitor estivesse impossibilitado de prestar a assistência necessária. Dessa forma, estariam incluídas no comando legal as seguintes hipóteses: I - ausência propriamente dita (aquela judicialmente declarada, a decorrente de desaparecimento do genitor e o seu falecimento); II - incapacidade de exercício de atividade remunerada pelo pai; e III - insuficiência de recursos necessários para suprir as necessidades do filho”. (destacamos)

Nesse sentido, a Quarta Turma do Superior Tribunal da Justiça já se posicionou que a responsabilidade dos avós não é apenas sucessiva, mas complementar, podendo ser chamados a subsidiar a pensão prestada pelo pai, que não supre de maneira satisfatória as necessidades dos alimentandos. Assim, leia-se: 
"Família. Alimentos. Avós. Obrigação complementar. Precedentes do STJ. CCB, art. 397. CCB/2002, arts. 1.696 e 1.698. Os avós, tendo condições, podem ser chamados a complementar o pensionamento prestado pelo pai que não supre de modo satisfatório a necessidade dos alimentandos. Precedentes. Recurso conhecido e provido (STJ, 4ª T., Rec. Esp. 119.336/SP - rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar - J. - DJ 10/03/2003)". 
"AÇÃO DE ALIMENTOS PROPOSTA POR NETO CONTRA OS AVOS PATERNOS. EXCLUSÃO PRETENDIDA PELOS REUS SOB A ALEGAÇÃO DE QUE O PROGENITOR JA VEM CONTRIBUINDO COM UMA PENSÃO. ART. 397 DO CÓDIGO CIVIL. O FATO DE O GENITOR JA VIR PRESTANDO ALIMENTOS AO FILHO NÃO IMPEDE QUE ESTE ULTIMO POSSA RECLAMA-LOS DOS AVOS PATERNOS, DESDE QUE DEMONSTRADA A INSUFICIENCIA DO QUE RECEBE. A RESPONSABILIDADE DOS AVOS NÃO E APENAS SUCESSIVA EM RELAÇÃO A RESPONSABILIDADE DOS PROGENITORES, MAS TAMBEM E COMPLEMENTAR PARA O CASO EM QUE OS PAIS NÃO SE ENCONTREM EM CONDIÇÕES DE ARCAR COM A TOTALIDADE DA PENSÃO, OSTENTANDO OS AVOS, DE SEU TURNO, POSSIBILIDADES FINANCEIRAS PARA TANTO. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. 397 CÓDIGO CIVIL (70740 SP 1995/0036741-6, Relator: Ministro BARROS MONTEIRO, Data de Julgamento: 25/05/1997, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 25.08.1997 p. 39375RDJTJDFT vol. 55 p. 63RDR vol. 9 p. 325REVJMG vol. 141 p. 540REVJUR vol. 242 p. 55RSTJ vol. 100 p. 195)". 

Segundo a Ministra do Superior Tribunal de Justiça Fátima Nancy Andrighi (em seu artigo O Reconhecido hábito “ficar” como elemento ponderável da prova na busca do reconhecimento da paternidade): “a denominada paternidade responsável estendeu seus efeitos, conforme expresso no Código Civil, alcançando os avós, que tendo condições, podem ser chamados a complementar ou completar o pensionamento prestado pelo pai que não supre de modo satisfatório a necessidade do alimentando”.

Mesmo após as decisões proferidas pelo STJ, os posicionamentos dos Tribunais ainda continuam divergindo e muitos juízes singulares somente dão provimento às ações quando provada a falta absoluta de auxílio do pai.

De outro lado, muitos Tribunais e magistrados passaram a admitir, reconhecendo ser legítimo, o chamamento dos avós nas ações propostas em face do pai para completarem o dever dele, ou a propositura delas diretamente contra eles para que complementem o valor de obrigação já fixada para o pai em outro processo.

Logo, passa-se a ter devedores de linhas de ascendência diferentes num mesmo processo de alimentos, dividindo a obrigação de sustento do menor. 

Em outras palavras, tem-se deferido pedidos de alimentos em face dos avós mesmo que o pai já cumpra o dever alimentar, e não apenas nos casos em que ele em nada auxilie ou que não é encontrado como antes se consagrava. 

Portanto, o fato de que o pai tenha alguma condição de ajudar no sustento do(s) filho(s) não enseja, por si só, na dispensa da ajuda dos avós, os quais também podem vir a contribuir para que seja alcançado o valor ideal conforme as necessidades da criança.

O que o Código Civil busca é diminuir as diferenças entre os familiares em linha reta, com a imposição do dever de solidariedade, que caso não seja cumprido espontaneamente, deverá ser feito sob a coação do Estado por meio do Poder Judiciário.

Nesse contexto, é de grande valia mencionar a ponderação feita pela Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande de Sul, Maria Berenice Dias de que: “Aos descendentes, a pensão deve ser fixada de forma proporcional aos rendimentos do alimentante. Chega-se a definir o filho como ‘sócio do pai’, pois tem ele direito de manter o mesmo padrão de vida ostentado pelo genitor.”. A autora ainda ressalta que: 
O avô, que tiver condições econômicas para tal, deve ser chamado a contribuir, quando seu filho deixar de atender à obrigação de sustento do neto. O só fato de o detentor da guarda ter algum rendimento não exclui a responsabilidade do ascendente. De todo injustificável submeter uma criança a viver limitada e acanhada disponibilidade de seus genitores quando possui avô que pode complementar a carência dos pais. É mister invocar o critério de proporcionalidade entre os ganhos de guardião e a situação econômica do ascendente. Se o pai não estiver pagando nada ou estiver pagando pouco, cabe chamar o avô para complementar o encargo. (Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007; p. 471/472 e 481) (destacamos) 

Mas, cabe enfatizar que nem a Lei nem os entendimentos jurisprudenciais amparam o enriquecimento ilícito da parte autora (menor e sua representante legal). 

Destarte, o valor fixado para as partes do pólo passivo (réus) nesse tipo de demanda não deve ultrapassar o necessário para que a criança tenha um padrão de vida semelhante ao deles (ascendentes).

O Código Civil estabelece o binômio da necessidade e possibilidade em seu artigo 1.694, § 1º. Leia:
Art. 1.694: (...)§ 1º - os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.”Assim, os Requeridos devem cumprir o dever de prestação de alimentos dentro do que o menor necessita, mas que deverá sempre ser limitado a uma quantia que não lhes cause prejuízos em seu próprio sustento.

III - Também há divergências jurisprudenciais sobre a ordem para se propor ação alimentícia contra os avós.

Predomina o entendimento de que para que sejam exigidos alimentos dos avós, primeiramente, há a necessidade de se comprovar a insuficiência total (para os que entendem que a obrigação é subsidiária) ou parcial (para os que julgam que a obrigação é complementar, como o STJ) de recursos do pai.

Portanto, a maioria dos Tribunais entendem que para a propositura da ação avoenga, antes é necessário que seja proposta ação contra o ascendente de primeiro grau.

Entretanto, a doutrina tem defendido que a inserção dos avós no pólo passivo pode ocorrer no mesmo processo em que é acionado o pai, e para isso sugere que a ação seja interposta em litisconsórcio passivo sucessivo.

A ideia é tornar o procedimento mais célere, que possibilite que as condições financeira do pai e dos avós sejam analisadas num mesmo processo. No entanto, lembram que deve ser respeitada a ordem de preferência. 

Assim, ensinam que primeiramente devem ser verificados os recursos do ascendente direto e, caso eles demonstrem ser insuficientes, que já sejam analisadas as condições dos avós para suprirem-nos.      

A confirmar a assertiva, Fredie Didier Jr afirma que:
“(...) nada impede, contudo, que o alimentando proponha de logo a demanda contra todos os devedores-comuns que estejam no mesmo grau, em litisconsórcio facultativo simples – a sentença fixará a proporção com que cada um dos obrigados deverá concorrer. É possível, até mesmo, a propositura de demanda contra devedores que se encontram em classes diversas, que mantenham  entre  si vínculos de subsidiariedade (mãe e avó, p. exemplo.: arts. 1.696 e 1.697 do CC-2002), valendo-se o autor do instituto do litisconsórcio facultativo eventual – explicado no item relativo à desconsideração da pessoa jurídica. Nesse caso, na sentença, o juiz verificará primeiro a existência da obrigação do obrigado  principal; se  não  lhe for imputado o  dever de  pagar  toda a  obrigação  alimentícia, o magistrado avançará e certificará a existência da obrigação em face do devedor subsidiário; se lhe for imputado o  dever de  pagar  toda a  obrigação, ficará o  juiz dispensado de  examinar o pedido eventual de condenação do obrigado subsidiário, uma vez que tornou-se desnecessário” (Regras processuais do novo Código  Civil. São Paulo: Saraiva, 2004).

No mesmo sentido a desembargadora e doutrinadora  Maria Berenice Dias afirma que:

Nada impede, no entanto, intentar ação concomitante entre o pai e o avô. Constitui-se um litisconsórcio passivo facultativo sucessivo. Ainda que não disponha o autor de prova da impossibilidade do pai, o uso da mesma demanda atende ao princípio da economia processual. Na instrução é que, comprovada a ausência de condições do genitor, evidenciada a impossibilidade de ele adimplir a obrigação, será reconhecida a responsabilidade dos avós. A cumulação da ação contra pais e avós tem a vantagem de assegurar a obrigação desde a data da citação”.    (Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007; p. 471/472)           
                
Assim, alguns Tribunais e juízes de primeiro grau têm acolhido as ações alimentícias propostas em face do pai e dos avós ao mesmo tempo. No entanto, esse posicionamento ainda não é unânime.


IV - Outro ponto bastante discutido é sobre a necessidade do chamamento dos outros avós a figurarem no pólo passivo da demanda quando uns são acionados.

Alguns juristas entendem que se, por exemplo, os avós paternos forem convocados a participarem do sustento de seus netos, também deverão ser chamados os avós maternos.

Esse posicionamento vem da interpretação da segunda parte do artigo 1.698 do Código Civil que dispõe: “sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide”.

Acontece que na maioria dos casos a parte que requer alimentos para a criança já cumpre sua parcela do dever legal de prover o sustento dela e pugna, subsidiariamente, pela inserção dos avós vinculados ao outro responsável para suprir-lhe as faltas.

Ademais, a maioria dos Tribunais entendem que não existe litisconsórcio passivo necessário por se tratar de uma obrigação divisível e não solidária. 

Como já diz o próprio nome, a obrigação alimentícia pode ser dividida entre várias partes, que não necessariamente são solidárias no dever, ou seja, não têm que cumprir juntas.

Portanto, o fato de serem réus numa ação os avós paternos não ensejam, obrigatoriamente, a presença também dos avós maternos.

Existe sim a possibilidade legal de que todos os avós concorram para o sustento do menor, mas não se trata de uma obrigatoriedade.

Nesse sentido, foi a decisão da 3ª Turma Cível do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, entre outras abaixo transcritas:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. AÇÃO DE ALIMENTOS CONTRA OS AVÓS PATERNOS. DETERMINAÇÃO DE EMENDA DA INICIAL PARA INCLUSÃO, NO POLO PASSIVO, DOS AVÓS MATERNOS. DESCABIMENTO. INEXISTÊNCIA DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. Considerando que a obrigação de prestar alimentos é divisível e não solidária, gerando um dever subsidiário e complementar, é da parte autora a prerrogativa de escolher contra quem vai demandar, não havendo que se falar, no caso, em litisconsórcio passivo necessário entre os avós maternos. O pedido de fixação de alimentos não pode ser apreciado, sob pena de... (TJ-RS - AI: 70049135890 RS , Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Data de Julgamento: 25/05/2012, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 29/05/2012) (destacamos)
Agravo de Instrumento. Ação alimentos contra avós paternos. Citação ex officio dos avós materno. Litisconsórcio necessário. Inexistência. Interlocutória reformada. Agravo provido. I - Se reveste de irregularidade o despacho interlocutório que, em ação de alimentos intentada contra os avós paternos, determina de ofício a citação dos avós maternos, pois inexiste, no caso, litisconsorte necessário, no entanto, conforme precedente do e. STJ, "não se propondo a instauração do litisconsorte facultativo impróprio entre devedores eventuais, sujeita-se ele as conseqüências de sua omissão". II - Agravo provido. (TJ-SE - AI: 2006205932 SE , Relator: DES. LUIZ ANTÔNIO ARAÚJO MENDONÇA, Data de Julgamento: 07/11/2006, 2ª.CÂMARA CÍVEL)
A Ementa seguinte ilustra várias questões examinadas no texto, como a obrigação do avô paterno de complementar os alimentos prestados pelo pai e a dispensa dos avós maternos na ação. Veja:
APELAÇÃO. AGRAVO RETIDO. ALIMENTOS. AVÔ PATERNO. CHAMAMENTO DOS DEMAIS  AVÓS. DESCABIMENTO. OBRIGAÇÃO SUBSIDIÁRIA. POSSIBILIDADES DO AVÔ. "QUANTUM". VISITAS PATERNAS. ÔNUS SUCUMBENCIAIS. Não há litisconsórcio passivo necessário entre avós, pelo que, proposta ação de alimentos subsidiários contra um deles, não há obrigatoriedade no chamamento dos demais. Precedentes jurisprudenciais. Caso de pai recém formado, que aufere diminuto rendimento, inclusive por trabalhar com o próprio pai (o avô paterno); e de mãe que está desempregada. Circunstâncias que demonstram a incapacidade dos genitores arcarem sozinhos com o sustento do filho, pelo que cabível a fixação de obrigação subsidiária contra o avô paterno. Avô paterno que tem boas condições financeiras (empresa, imóveis, carro importado e aplicações financeiras), e plena capacidade de alcançar valores ao neto, sem prejuízo do próprio sustento. Caso em que não se vê nos autos qualquer prova de necessidade maior por parte do alimentado, a justificar a fixação de alimentos em prol dele em valor maior ao já fixado pela sentença. Eventual resistência da mãe em entregar o filho ao pai no período de visitas dele, pode dar ensejo a eventual pedido de cumprimento forçado do que foi regulado para as visitas, mas por si só não enseja necessidade de alteração da visitação. Havendo pretensão resistida ao pedido de fixação de alimentos, e ao final sendo fixada a obrigação, há sucumbência mínima por parte do alimentado, ainda que o "quantum" seja fixado em valor menor do que o pedido. Precedentes jurisprudenciais do STJ. Tratando-se de condenação ao pagamento de alimentos, os honorários advocatícios de sucumbência devem ser fixados em percentual sobre uma anuidade alimentar. Precedentes jurisprudenciais. NEGARAM PROVIMENTO AO AGRAVO RETIDO. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AOS APELOS DOS RÉUS. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DO AUTOR. (Apelação Cível Nº 70042912824, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 18/08/2011). (destacamos)


O presente artigo dispõe sobre os pontos mais divergentes da obrigação alimentícia avoenga, no entanto ele não esgota o estudo do tema, que é atual e ainda passível de muitas discussões.

Pode se dizer que as ações avoengas representam mais um mecanismo prático para fazer valer os ensinamentos da nossa Carta Magna e do ECA, que zelam pela proteção da criança e do adolescente.

Na humilde opinião desta autora a aplicação das obrigações alimentícias em face dos avós representa um avanço social, que protege a criança de irresponsabilidades que possam vir a causar prejuízos irreversíveis em sua formação pela escassez de recursos que lhe garantam viver com dignidade.

Ademais, a imposição do dever legal obriga os parentes a cumprirem o dever moral da solidariedade, muitas vezes esquecido.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

NAMORO OU UNIÃO ESTÁVEL?


Hodiernamente o namoro tem assumido novas configurações o que o torna cada vez mais parecido com a união estável, que foi reconhecida para proteger as relações familiares não formalizadas pelo casamento. Essa semelhança pode vir a causar dificuldade na aplicação das Leis. O tema é interessante e, não por coincidência, a data de hoje foi crucial para sua a escolha 


Na semana passada me atentei para uma notícia muito intrigante que tinha a seguinte manchete: 

Juiz obriga ex-namorado a pagar pensão por causa do status do Facebook 

Logo percebi que havia algo errado, pois os reflexos patrimoniais de um relacionamento apenas se aplicam na união estável e no casamento. Até então não existe diploma legal que preveja tais direitos societários ou de obrigação de prestar alimentos para o namoro.

Após ler a reportagem que falava sobre a decisão do juiz Antonio Nicolau Barbosa Sobrinho da 2ª Vara de Família da Comarca da capital paraense proferida em 31/05/13, percebi que, na verdade, não se tratava da concessão de pensão alimentícia e da meação de bem comum para ex namorada, mas sim para ex companheira. 

De acordo com a nota, a Autora havia requerido na justiça que seu ex companheiro lhe pagasse pensão alimentícia, bem como requeria a propriedade de metade do carro que ele havia comprado durante a constância da relação.

Na decisão, o magistrado teria entendido que o casal tinha um relacionamento de união estável, usando como base fotos deles dividindo a mesma cama, chamamentos como “minha mulher” e principalmente o status da rede social (facebook), que dizia: “está em um relacionamento sério”. O jurista teria fundamentado que o termo “relacionamento sério” refere-se a relações duradouras e com objetivo de constituir família - características da união estável.

Vocês não devem estar entendendo o porquê do uso do futuro do pretérito, então eu vou explicar: acontece que tudo não passou de suposições, para melhor dizer, as informações veiculadas foram falsas. 

Porque segundo o Tribunal de Justiça do Estado do Pará tal fato nunca ocorreu, e nem sequer o juiz mencionado atua na capital do Estado, e que quem atua na 2ª Vara da Família de Belém, comarca da Capital, é a juíza Elvina Gemaque Taveira, há mais de cinco anos, a qual classificou a postagem como uma “piada de mau gosto”, uma vez que uma decisão judicial se baseia em provas oficiais e documentais, e não oficiosas e falaciosas. (Fonte: Site oficial do Tribunal de Justiça do Pará)

No entanto eu já estava muito envolvida com o tema e decidi persistir na minha pesquisa. Então continuei analisando os aspectos da notícia, supondo que eles poderiam mesmo ter ocorrido, até porque o magistrado tem o poder discricionário, tendo liberdade para proferir suas decisões conforme seu entendimento, sempre as motivando, é claro.

O assunto é interessante, pois em casos como o abordado, seria sim muito complicado chegar-se a uma conclusão exata sobre o tipo de relacionamento existente entre o casal, porque namoro e união estável são, hoje, institutos que apresentam características muito semelhantes, entre elas a de reproduzirem um relacionamento sério.

É evidente que o conceito de relacionamento sério é muito amplo e até pessoal, e não necessariamente o douto magistrado poderia basear-se apenas neste termo para arbitrar pagamento de pensão à Autora, com o entendimento de que ele por si só consiste numa união estável. Mesmo porque muitos namoros representam para as partes e para os que convivem com elas um relacionamento sério, baseado em deveres de respeito, lealdade e companheirismo.

No entanto, apesar das semelhanças que há entre eles na prática, no campo jurídico eles têm uma grande diferença e geram diferentes efeitos: a constituição de direitos de família, que só acontece na união estável. Por isso, vamos falar um pouco sobre ela.

Primeiramente, vale ressaltar que as leis sempre devem acompanhar as mudanças sociais, do contrário elas perdem o seu sentido, que é possibilitar o convívio social mediante o estabelecimento de direitos e deveres para cada indivíduo. 

Além do que, com Leis estáticas, novas situações ficariam desamparadas pelo Poder Judiciário, que sem as normas não podem decidir os conflitos que são propostos na justiça, por falta de embasamentos legais que motivem as decisões.

No passado o casamento subsistia como única forma de constituição familiar que merecia o respeito social e legal.

Com o passar do tempo, novas situações sociais foram surgindo. Isso porque a mulher que vivia para cuidar da casa e da família e que dependia do marido para sobreviver passou a trabalhar fora de casa e a ter maior autonomia financeira, o que lhe deu maior liberdade para decidir se desejava permanecer no casamento ou se preferia romper o vínculo. 

Com os rompimentos que ocorriam na prática, outros institutos jurídicos foram surgindo, entre eles o divórcio, instituído pela Lei 6.515 de 13/07/1977. E a possibilidade de desfazer a união com amparo da Lei acabou fragilizando a instituição do casamento. 

Também, o distanciamento da religiosidade foi um ponto importante para isso, pois o conceito de “Até que a morte os separe” foi relativizado pela sociedade.

Assim, muitas pessoas que já haviam sido casadas passaram apenas a viverem junto de novos companheiros(as), o que também se tornou comum na vida dos que não tinham certeza sobre a formalização do vínculo, mas pretendia continuar em convívio constante e também dos que não possuíam condições financeiras para celebrar o casamento.

Diante disso o legislador percebeu a necessidade de proteger a família constituída por meio de uma união entre homem e mulher que demonstrasse uma estabilidade, e que muitas vezes já tinham filhos concebidos da união e a co-habitação, e por isso consagrou o instituto da união estável, regulamentada em 10/05/1996, pela Lei nº 9.278.

De lá para cá, o instituto só veio ganhando força na esfera jurídica e mais adeptos, e hoje, um grande número de famílias são constituídas pela união estável. A qual também reconhecida entre pessoas do mesmo sexo pelo STF, que declarou procedente a Ação Direta de Inconstitucinalidade (ADin) nº 4.277, julgada em 5 de Maio de 2011. (Inteiro teor: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635)

Enquanto o instituto da união estável passava a ser reconhecido no mundo do Direito brasileiro, o namoro sofria inúmeras transformações. 

Intimidades entre namorados antes inadmissíveis, passaram a ser aceitas e, não só foram aceitas como passaram a figurar como característica desse tipo de relacionamento. Por isso, atualmente muitos casais de namorados possuem o hábito de dormirem juntos, geralmente na mesma casa.

É obvio que existem relações bastante descomprometidas, mas namoros mais sérios, que envolvem grande proximidade entre as partes podem ser facilmente confundidos com uma união estável, o que inclusive pode vir a gerar aberrações jurídicas ou decisões injustas como a que a notícia veiculou.

Então como diferenciar o namoro da união estável?

Primeiramente há que se dizer que cada instituto tem requisitos próprios e que por isso não cabe ao casal batizar qual o tipo de relação que possuem, mas caberá ao Estado determinar e caso presentes todos os requisitos emergirão os direitos e obrigações às partes envolvidas dos Direitos de Família, independentemente de sua vontade.

A união estável exige os seguintes requisitos para ser configurada: convivência pública (publicidade); convivência contínua (continuidade) e duradoura (lapso temporal capaz de configurar o ânimo de constituir família); e intenção de constituir família, pelo que dispõe o artigo 1.723 do Código Civil.

Ressalta-se ainda que a Lei não estabeleceu a necessidade da co-habitação e que também não fixou lapso temporal para que seja constada a união estável.

O namoro também pressupõe publicidade, durabilidade e continuidade. Portanto, é justamente o intuito de constituição de família que não se faz presente nesta espécie de relação afetiva. E, caso presente esteja, concluirá o Estado que há uma verdadeira união estável, e não mais um namoro.

O casal de namorados compartilha momentos de intimidade, anseios, alegrias e tristezas cotidianas.  E, apesar de projetarem a relação de afeto em um futuro próximo, testando, assim, a viabilidade prática de evoluir para um noivado, casamento ou uma união estável, entre eles não existe a genuína comunhão de vidas, de projetos, de planos, de interesses familiares. 

"Namorados aparecem juntos em festas, fotos, viagens, eventos sociais e geralmente frequentam um a família do outro, perifericamente. O afeto os envolve, mas não há, neste estágio, concretude maior conferida ao projeto conjunto de formação de uma família. 

De outro lado, na união estável, a família está formada. Não se planeja, se constata. Há a formação de um novo núcleo familiar, mediante objetivos comuns, concessões mútuas e abdicações de projetos individuais antigos, já que não consonantes aos da união. Ou seja, o nível de comprometimento de uma vida à outra é que será fator crucial para que surja uma sociedade de fato entre as partes." (Por Cristiana Sanchez Gomes Ferreira, advogada (OAB/RS nº 80.461)

Acontece que mesmo tendo isso claro e bem explicado ainda podem surgir dúvidas e controvérsias por parte do Estado (julgador). Pois, em suma, o que difere o namoro da união estável é a intenção das partes.

Eis aí o grande problema. Pois há uma linha muito tênue entre “o querer estar junto no futuro” do namoro e “o ter planos juntos” da união estável, já que em juízo são fatores extremamente subjetivos e que podem ser questionados pelas partes envolvidas que passem a ter interesses patrimoniais. 

Enfim, é muito difícil que o Estado consiga rotular o tipo de relacionamento amoroso que há entre um casal que o discute em juízo.

Bom, o mais seguro a ser feito por aqueles que pretendam ter um relacionamento amoroso sério e que perdure, mas que não desejam sujeitar-se à comunicação patrimonial, é formalizar uma declaração da existência da união estável, caso exista ou possa ser assim entendida, e a eleição, por exemplo, de um regime de bens tal como o da separação total, já que na união estável, que é equiparada ao casamento pela Constituição Federal,  vigora o regime de separação parcial de bens.



Ps: Dedico o presente à Maylson Guimarães!

"Chorinho de riso" (dica de teatro)

Nesta época do ano está acontecendo a Feira do Livro em Ribeirão Preto, na qual, além da exposição dos livros, são realizados muitos espetáculos e palestras interessantes. Caros seguidores, ontem fui assistir a uma peça de teatro muito interessante e resolvi compartilhar com vocês!

A peça se chama Chorinho, de Fauzi Arap e é uma comédia encenada pelas atrizes Denise Fraga e Cláudia Mello.



A história se passa em uma praça de uma cidade grande, onde ocorre o encontro da solteirona aposentada, que vive sozinha e que é cheia de preconceitos e da moradora de rua, que afirma que não é uma mendiga e que vive na rua, bem dizer, na praça, por opção, já que deseja fugir das regras sociais e dos anseios de seus familiares.

No decorrer da peça, de forma bastante divertida e regada a goles de cachaça das personagens, são questionados valores sociais, tais como: a necessidade de seguir padrões pré-estabelecidos ainda que isso possa trazer um grande sofrimento pessoal, a importância dada ao dinheiro pela sociedade e a forma individualista que os homens levam suas vidas.

A solteirona, que a princípio finge não ver a moradora de rua e gaba-se de seus valores, depois de algumas conversas - com muita insistência da "mendiga" - acaba cedendo e percebe o vazio de sua vida e de seus princípios, que inclusive muito macularam seu passado.

A peça, além de ser extremamente divertida, possibilita uma reflexão muito interessante acerca da forma de vida dos moradores de rua, entre elas a sensação de liberdade, tanto física quanto intelectual. Bem como dos preconceitos sociais que alimentamos e aos quais ficamos presos.

A atriz Denise Fraga plagia de forma perfeita as características dos moradores de rua, que geram certa repulsa social devido as suas atitudes inesperadas e espontâneas, que, pela visão social, aproximam- se da loucura. De outro lado, Cláudia Mello faz o papel perfeito da senhora arraigada a costumes tradicionais e solitária, que sem nada e ninguém em sua vida, ocupa seu tempo com visitas a psicólogas e aulas de inglês.

O texto é, sem dúvidas, muito inteligente! E o espetáculo ganhou prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte)  do Melhor Autor 2007! Maravilhoso! Se tiver oportunidade, assistam-no! Vale a pena!




domingo, 9 de junho de 2013

O DIREITO PENAL SIMBÓLICO E O PUNITIVISMO

O presente artigo tem por objetivo demonstrar o enrijecimento das penalidades em busca de atender aos anseios sociais por meio do Direito Penal Simbólico e suas consequências



O Direito Penal é usado pelo Estado perante a sociedade como aparato para que esta se sinta mais segura contra o aumento da criminalidade.

Fortemente influenciada pela mídia, a sociedade defende a atuação máxima desse ramo do Direito, visando não apenas a garantia de segurança, como também a aplicação de punições para satisfazer seu ideal de vingança contra crimes ocorridos, trata-se de um Direito Penal Simbólico.

O termo Simbólico é utilizado porque o instituto penal assumiu uma diferente configuração perante os cidadãos: a de passar uma ideia de segurança e afastamento da violência, ainda que não consiga fazê-lo de fato.

O fragmento seguinte do doutrinador e professor Luiz Flávio Gomes demonstra bem esta realidade:

O populismo penal vingativo que está tomando conta tanto do mundo ocidental civilizado (países centrais) como dos países periféricos é, antes de tudo, expressão de uma festa, visto que (como dizia Nietzsche) o sofrimento (veiculado por meio da vingança) traz em seu bojo um incomensurável prazer. Quando uma promessa é descumprida ou um acordo desonrado (ou seja: quando alguém é acusado de um crime, tendo descumprido ou supostamente descumprido as regras sociais e legais vigentes), a dor e o sofrimento daquele que deve (do criminoso devedor) serviria como equivalente ao desprazer causado pela promessa não cumprida (pela violação da norma)” [1].

O sofrimento do criminoso - que é visto como inimigo da sociedade - gera prazer, um prazer equivalente à satisfação do crédito (do direito de vingar).

É como se houvesse uma equivalência (subjetiva, psicológica) entre a dor infligida contra o infrator e o dano causado por ele. Em outras palavras, é como se existisse uma espécie de compensação entre o sofrimento do acusado e a ofensa por ele praticada (ou supostamente praticada) quando da aplicação da coerção jurídica.

Acontece que o ser humano sente prazer em ver seu semelhante que praticou ato ilícito – o devedor, o acusado, o condenado, o preso - sofrer ou ser humilhado, sobretudo, quando possível, publicamente (midiaticamente).

A raiva e o ódio (sentimentos de vingança) são descarregados sobre o acusado como forma de punição prazerosa pelo que ele fez ou pelo que ele é [1]. Para o senso comum o infrator punido acaba servindo como bode expiatório ou como exemplo para outros infratores.

E, para evitar que se propague a sensação de impunidade estatal, o que tem ocorrido é a ampliação da punição, ou seja, o Direito Penal Simbólico se tem utilizado do punitivismo para alcançar seus fins.

Nesta esteira de raciocínio esclarece Manuel Cancio Meliá:

Neste sentido, se parece evidente, no que se refere a realidade do Direito positivo, que a tendência atual do legislador é a de reagir com <<firmeza>> dentro de uma gama de setores a serem regulados, no marco da <<luta>> contra a criminalidade, isto é, com um incremento das penas previstas. Um exemplo, tomado do Código penal espanhol são as infrações relativas ao tráfico de drogas ou entorpecentes e substâncias psicotrópicas: a regulamentação contida no texto de 1995 duplica a pena prevista na regulação anterior, de modo que a venda de uma dose de cocaína _ considerada uma substância que produz <<grave dano à saúde>>, ensejando a aplicação de um tipo qualificado – supõe uma pena de três a nove anos de privação de liberdade (frente à, aproximadamente, um a quatro anos do Código anterior), potencialmente superior, por exemplo, à pena de homicídio culposo grave (um a quatro anos)(...)”[2]

Para Meliá o Direito Penal tem se tornado cada vez mais rígido, e afirma ainda que:

"(...) a carga genética do punitivismo (a idéia do incremento da pena como único instrumento de controle da criminalidade) se recombina com a do Direito Penal simbólico (a tipificação penal como mecanismo de criação de identidade social) dando lugar ao código do Direito penal do inimigo."[3] (Ler artigo sobre o Direito Penal do Inimigo)

Ocorre que, o Direito Penal tem se ampliado gradativamente para tutelar situações que antes não eram amparadas pelo Direito (administratização do Direito Penal- ver artigo) ou para tornar as punições mais severas.

Em outras palavras, para aumentar a sensação de resposta da Justiça perante a sociedade (Direito Penal Simbólico), o poder punitivo tem seguido os seguintes caminhos: ou aumenta as punições a crimes já previstos pelo ordenamento jurídico - como ocorre em muitos países no combate dos delitos ligados ao tráfico de entorpecentes, especialmente no Brasil (Lei nº 11.343/06). O que é feito por meio da majoração das penas ou de inserção de meios investigativos mais incisivos.

Ou o legislador tipifica novas formas de delitos, antes não condenáveis pelo Direito - como condutas de mera comunicação, tais quais os delitos que instigam o ódio racial. (Punitivismo)

Em conseqüência disso, o princípio da ultima ratio, que determina a intervenção apenas subsidiária do Direito Penal, vem sendo mitigado. E suas penalidades têm sido aplicadas a diversas infrações às quais antes não eram.

Luiz Flávio Gomes, recentemente, apelidou este fenômeno do endurecimento do sistema penal de "demagogia populista" e ainda ressaltou sua ineficácia . Leia:

"Propor endurecimento penal como solução para o gravíssimo problema da insegurança, sem antes equacionar o problema prisional, “é pura e simples demagogia” (e eu acrescentaria: populista). A ONU vem dizendo que uma das políticas públicas mais irresponsáveis da América Latina é a do populismo penal, porque promete soluções mágicas para problemas muito sérios, iludindo a população com medidas sedativas da sua ira e do seu profundo sentimento de impotência.

O legislador brasileiro, diante do problema da criminalidade, desde 1940, não faz outra coisa que aumentar o rigor dos castigos penais. O que conseguiu com isso? Em 1980, tínhamos 11,7 mortos para cada 100 mil pessoas. Em 2010, fechamos com 27,4 para a mesma quantidade de habitantes. Passamos a ser o 18º país mais violento do mudo. Ou seja: a política populista punitiva não é solução. Trata-se de verdadeiro charlatanismo discursar em sentido contrário."[4] 


As novas normas penais que surgiram nos últimos anos demonstram um claro enrijecimento das penalidades, o que ocorre em resposta aos anseios da sociedade, que defende a aplicação de reprimendas mais duras por meio de campanhas veiculadas na mídia e na internet.

Quando se analisa a pena de determinado crime é de grande importância, para mensurar sua gravidade, analisar a pena mínima em abstrato (previsão legal).

Isso porque, para aplicação da punição ao caso concreto, na fase da dosimetria da pena, o julgador inicia a análise pela pena mínima, que será agravada se assim exigirem os aspectos pessoais do réu, como a reincidência, os motivos fúteis ou torpes que o levaram a praticar o ilícito ou os meios cruéis utilizados, entre outros elencados no artigo 61 do Código Penal, que traz as circunstâncias agravantes do delito.

A título de exemplo vamos usar a Lei de Entorpecentes (nº 11.343/06) que é atual e que prevê em seu artigo 33 o seguinte:

Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

O artigo em comento, além de prever “18” tipos de condutas diferentes para o tráfico só no seu caput – o que demonstra uma clara intenção do legislador em aumentar a quantidade de condutas reprováveis - também previu uma pena mínima relativamente alta: 5 anos de reclusão; especialmente quando se leva em conta que o dispositivo protege o bem jurídico saúde pública e que a pena mínima prevista para o crime de homicídio doloso, que protege a vida humana, é de 6 anos.

Ou seja, a pena mínima aplicada ao crime de tráfico de drogas, prevista em 2006, é quase equivalente à aplicada para o delito de homicídio doloso, prevista pelo Código Penal (Decreto-lei nº 2.848) no ano de 1.940. Veja a transcrição do artigo 121:

Homicídio simples
Art 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Os diferentes dispositivos legais resguardam bens jurídicos diversos, mas acredita-se que o bem jurídico vida deve estar entre os de máxima proteção, e que por isso, deveria ter a pena mínima bem superior à do trafico ilícito de entorpecentes. Até porque, o dano causado à saúde, ainda que se trate da saúde pública, não chega a lesionar efetivamente a vida, portanto é menor.

Isso mostra o recrudescimento penal e traços do punitivismo que tem ocorrido no Brasil em relação à Lei de Drogas como antes mencionado.

Outro exemplo está relacionado ao Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826) de 22 de Dezembro de 2003, quando prevê o crime de disparo de arma de fogo, assim:
     
Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

A pena mínima poderia ser inferior, uma vez que trata apenas de delito de perigo abstrato, ou seja, não representa um dano efetivo a nenhum bem jurídico.

Assim, trata de norma que não enseja num resultado material, em outras palavras, que não representa uma alteração da situação anterior ou do meio e que ocorreu.

Essa é outra novidade legislativa que espelha esse punitivismo, pois penaliza inclusive as condutas que gerem apenas perigo e não dano efetivo.

No entanto a desproporção encontra-se absurda quando observamos o delito de lesão corporal grave, previsto no artigo 129, §1º do Código Penal. Leia:

Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.

O delito de lesão corporal grave traz afronta ao bem jurídico integridade física, de modo que possa causar dano irreversível ou mesmo risco de vida. Assim como no crime de homicídio, a ação deve ser proposta pelo Ministério Público (Ação Penal Pública Incondicionada), independente da vontade da vítima, o que demonstra o objetivo claro de que o bem seja protegido com grande eficácia, diferente do que acontece na lesão corporal leve.

Como é possível perceber, a pena mínima aplicada à lesão corporal grave é inferior à aplicada ao mero disparo de tiro, que não atinja a integridade física de ninguém.

Ou seja, se uma lesão de natureza grave adveio de tiro, seria melhor negá-la e imputar ao réu o delito de disparo, para que lhe fosse aplicada uma penalidade maior.

Eis uma grande desproporção resultada do punitivismo, que elucida como o legislador passou a aplicar penas mais altas nos últimos anos.

O presente estudo não tem como objetivo criticar o recrudescimento das penas pelo sistema punitivo brasileiro, mas sim explanar que esse fenômeno tem ocorrido nos últimos anos quando da previsão de leis específicas, como as supra exemplificadas.

Assim como, pretende ventilar que tal processo tem gerado uma incoerência no que se refere à proteção dos bens jurídicos que as novas leis protegem em face dos já protegidos pelo Código Penal brasileiro.

No entanto, com o punitivismo cada vez mais persistente no sistema penal, acredita-se que em pouco tempo as desproporções entre as punições dos diferentes bens jurídicos serão sanadas, pois pelo caminho que seguem os anseios sociais e os persistentes ensinamentos da mídia, em breve todos os dispositivos penais já existentes terão suas punições agravadas.

O que não se sabe ainda é se também poderá ser questionado no futuro sobre o tempo máximo da reclusão de 30 anos.

Bom, de nada pode se duvidar. Pode até ser que em poucos anos venha a ser discutida a prisão perpétua, quem sabe, ou ainda a pena de morte, já defendida por muitos inclusive.

 Será que o Sistema Penal Simbólico poderá chegar a tais extremos para agradar a sociedade? Mesmo que seja preciso relativizar os princípios constitucionais para isso? E será quais serão os resultados disso? Nada resta se não esperar para ver, e opinar sempre, é claro!




[2] JAKOBS, Günter, e MELIÁ, Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 62.