domingo, 9 de junho de 2013

O DIREITO PENAL SIMBÓLICO E O PUNITIVISMO

O presente artigo tem por objetivo demonstrar o enrijecimento das penalidades em busca de atender aos anseios sociais por meio do Direito Penal Simbólico e suas consequências



O Direito Penal é usado pelo Estado perante a sociedade como aparato para que esta se sinta mais segura contra o aumento da criminalidade.

Fortemente influenciada pela mídia, a sociedade defende a atuação máxima desse ramo do Direito, visando não apenas a garantia de segurança, como também a aplicação de punições para satisfazer seu ideal de vingança contra crimes ocorridos, trata-se de um Direito Penal Simbólico.

O termo Simbólico é utilizado porque o instituto penal assumiu uma diferente configuração perante os cidadãos: a de passar uma ideia de segurança e afastamento da violência, ainda que não consiga fazê-lo de fato.

O fragmento seguinte do doutrinador e professor Luiz Flávio Gomes demonstra bem esta realidade:

O populismo penal vingativo que está tomando conta tanto do mundo ocidental civilizado (países centrais) como dos países periféricos é, antes de tudo, expressão de uma festa, visto que (como dizia Nietzsche) o sofrimento (veiculado por meio da vingança) traz em seu bojo um incomensurável prazer. Quando uma promessa é descumprida ou um acordo desonrado (ou seja: quando alguém é acusado de um crime, tendo descumprido ou supostamente descumprido as regras sociais e legais vigentes), a dor e o sofrimento daquele que deve (do criminoso devedor) serviria como equivalente ao desprazer causado pela promessa não cumprida (pela violação da norma)” [1].

O sofrimento do criminoso - que é visto como inimigo da sociedade - gera prazer, um prazer equivalente à satisfação do crédito (do direito de vingar).

É como se houvesse uma equivalência (subjetiva, psicológica) entre a dor infligida contra o infrator e o dano causado por ele. Em outras palavras, é como se existisse uma espécie de compensação entre o sofrimento do acusado e a ofensa por ele praticada (ou supostamente praticada) quando da aplicação da coerção jurídica.

Acontece que o ser humano sente prazer em ver seu semelhante que praticou ato ilícito – o devedor, o acusado, o condenado, o preso - sofrer ou ser humilhado, sobretudo, quando possível, publicamente (midiaticamente).

A raiva e o ódio (sentimentos de vingança) são descarregados sobre o acusado como forma de punição prazerosa pelo que ele fez ou pelo que ele é [1]. Para o senso comum o infrator punido acaba servindo como bode expiatório ou como exemplo para outros infratores.

E, para evitar que se propague a sensação de impunidade estatal, o que tem ocorrido é a ampliação da punição, ou seja, o Direito Penal Simbólico se tem utilizado do punitivismo para alcançar seus fins.

Nesta esteira de raciocínio esclarece Manuel Cancio Meliá:

Neste sentido, se parece evidente, no que se refere a realidade do Direito positivo, que a tendência atual do legislador é a de reagir com <<firmeza>> dentro de uma gama de setores a serem regulados, no marco da <<luta>> contra a criminalidade, isto é, com um incremento das penas previstas. Um exemplo, tomado do Código penal espanhol são as infrações relativas ao tráfico de drogas ou entorpecentes e substâncias psicotrópicas: a regulamentação contida no texto de 1995 duplica a pena prevista na regulação anterior, de modo que a venda de uma dose de cocaína _ considerada uma substância que produz <<grave dano à saúde>>, ensejando a aplicação de um tipo qualificado – supõe uma pena de três a nove anos de privação de liberdade (frente à, aproximadamente, um a quatro anos do Código anterior), potencialmente superior, por exemplo, à pena de homicídio culposo grave (um a quatro anos)(...)”[2]

Para Meliá o Direito Penal tem se tornado cada vez mais rígido, e afirma ainda que:

"(...) a carga genética do punitivismo (a idéia do incremento da pena como único instrumento de controle da criminalidade) se recombina com a do Direito Penal simbólico (a tipificação penal como mecanismo de criação de identidade social) dando lugar ao código do Direito penal do inimigo."[3] (Ler artigo sobre o Direito Penal do Inimigo)

Ocorre que, o Direito Penal tem se ampliado gradativamente para tutelar situações que antes não eram amparadas pelo Direito (administratização do Direito Penal- ver artigo) ou para tornar as punições mais severas.

Em outras palavras, para aumentar a sensação de resposta da Justiça perante a sociedade (Direito Penal Simbólico), o poder punitivo tem seguido os seguintes caminhos: ou aumenta as punições a crimes já previstos pelo ordenamento jurídico - como ocorre em muitos países no combate dos delitos ligados ao tráfico de entorpecentes, especialmente no Brasil (Lei nº 11.343/06). O que é feito por meio da majoração das penas ou de inserção de meios investigativos mais incisivos.

Ou o legislador tipifica novas formas de delitos, antes não condenáveis pelo Direito - como condutas de mera comunicação, tais quais os delitos que instigam o ódio racial. (Punitivismo)

Em conseqüência disso, o princípio da ultima ratio, que determina a intervenção apenas subsidiária do Direito Penal, vem sendo mitigado. E suas penalidades têm sido aplicadas a diversas infrações às quais antes não eram.

Luiz Flávio Gomes, recentemente, apelidou este fenômeno do endurecimento do sistema penal de "demagogia populista" e ainda ressaltou sua ineficácia . Leia:

"Propor endurecimento penal como solução para o gravíssimo problema da insegurança, sem antes equacionar o problema prisional, “é pura e simples demagogia” (e eu acrescentaria: populista). A ONU vem dizendo que uma das políticas públicas mais irresponsáveis da América Latina é a do populismo penal, porque promete soluções mágicas para problemas muito sérios, iludindo a população com medidas sedativas da sua ira e do seu profundo sentimento de impotência.

O legislador brasileiro, diante do problema da criminalidade, desde 1940, não faz outra coisa que aumentar o rigor dos castigos penais. O que conseguiu com isso? Em 1980, tínhamos 11,7 mortos para cada 100 mil pessoas. Em 2010, fechamos com 27,4 para a mesma quantidade de habitantes. Passamos a ser o 18º país mais violento do mudo. Ou seja: a política populista punitiva não é solução. Trata-se de verdadeiro charlatanismo discursar em sentido contrário."[4] 


As novas normas penais que surgiram nos últimos anos demonstram um claro enrijecimento das penalidades, o que ocorre em resposta aos anseios da sociedade, que defende a aplicação de reprimendas mais duras por meio de campanhas veiculadas na mídia e na internet.

Quando se analisa a pena de determinado crime é de grande importância, para mensurar sua gravidade, analisar a pena mínima em abstrato (previsão legal).

Isso porque, para aplicação da punição ao caso concreto, na fase da dosimetria da pena, o julgador inicia a análise pela pena mínima, que será agravada se assim exigirem os aspectos pessoais do réu, como a reincidência, os motivos fúteis ou torpes que o levaram a praticar o ilícito ou os meios cruéis utilizados, entre outros elencados no artigo 61 do Código Penal, que traz as circunstâncias agravantes do delito.

A título de exemplo vamos usar a Lei de Entorpecentes (nº 11.343/06) que é atual e que prevê em seu artigo 33 o seguinte:

Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

O artigo em comento, além de prever “18” tipos de condutas diferentes para o tráfico só no seu caput – o que demonstra uma clara intenção do legislador em aumentar a quantidade de condutas reprováveis - também previu uma pena mínima relativamente alta: 5 anos de reclusão; especialmente quando se leva em conta que o dispositivo protege o bem jurídico saúde pública e que a pena mínima prevista para o crime de homicídio doloso, que protege a vida humana, é de 6 anos.

Ou seja, a pena mínima aplicada ao crime de tráfico de drogas, prevista em 2006, é quase equivalente à aplicada para o delito de homicídio doloso, prevista pelo Código Penal (Decreto-lei nº 2.848) no ano de 1.940. Veja a transcrição do artigo 121:

Homicídio simples
Art 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Os diferentes dispositivos legais resguardam bens jurídicos diversos, mas acredita-se que o bem jurídico vida deve estar entre os de máxima proteção, e que por isso, deveria ter a pena mínima bem superior à do trafico ilícito de entorpecentes. Até porque, o dano causado à saúde, ainda que se trate da saúde pública, não chega a lesionar efetivamente a vida, portanto é menor.

Isso mostra o recrudescimento penal e traços do punitivismo que tem ocorrido no Brasil em relação à Lei de Drogas como antes mencionado.

Outro exemplo está relacionado ao Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826) de 22 de Dezembro de 2003, quando prevê o crime de disparo de arma de fogo, assim:
     
Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

A pena mínima poderia ser inferior, uma vez que trata apenas de delito de perigo abstrato, ou seja, não representa um dano efetivo a nenhum bem jurídico.

Assim, trata de norma que não enseja num resultado material, em outras palavras, que não representa uma alteração da situação anterior ou do meio e que ocorreu.

Essa é outra novidade legislativa que espelha esse punitivismo, pois penaliza inclusive as condutas que gerem apenas perigo e não dano efetivo.

No entanto a desproporção encontra-se absurda quando observamos o delito de lesão corporal grave, previsto no artigo 129, §1º do Código Penal. Leia:

Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.

O delito de lesão corporal grave traz afronta ao bem jurídico integridade física, de modo que possa causar dano irreversível ou mesmo risco de vida. Assim como no crime de homicídio, a ação deve ser proposta pelo Ministério Público (Ação Penal Pública Incondicionada), independente da vontade da vítima, o que demonstra o objetivo claro de que o bem seja protegido com grande eficácia, diferente do que acontece na lesão corporal leve.

Como é possível perceber, a pena mínima aplicada à lesão corporal grave é inferior à aplicada ao mero disparo de tiro, que não atinja a integridade física de ninguém.

Ou seja, se uma lesão de natureza grave adveio de tiro, seria melhor negá-la e imputar ao réu o delito de disparo, para que lhe fosse aplicada uma penalidade maior.

Eis uma grande desproporção resultada do punitivismo, que elucida como o legislador passou a aplicar penas mais altas nos últimos anos.

O presente estudo não tem como objetivo criticar o recrudescimento das penas pelo sistema punitivo brasileiro, mas sim explanar que esse fenômeno tem ocorrido nos últimos anos quando da previsão de leis específicas, como as supra exemplificadas.

Assim como, pretende ventilar que tal processo tem gerado uma incoerência no que se refere à proteção dos bens jurídicos que as novas leis protegem em face dos já protegidos pelo Código Penal brasileiro.

No entanto, com o punitivismo cada vez mais persistente no sistema penal, acredita-se que em pouco tempo as desproporções entre as punições dos diferentes bens jurídicos serão sanadas, pois pelo caminho que seguem os anseios sociais e os persistentes ensinamentos da mídia, em breve todos os dispositivos penais já existentes terão suas punições agravadas.

O que não se sabe ainda é se também poderá ser questionado no futuro sobre o tempo máximo da reclusão de 30 anos.

Bom, de nada pode se duvidar. Pode até ser que em poucos anos venha a ser discutida a prisão perpétua, quem sabe, ou ainda a pena de morte, já defendida por muitos inclusive.

 Será que o Sistema Penal Simbólico poderá chegar a tais extremos para agradar a sociedade? Mesmo que seja preciso relativizar os princípios constitucionais para isso? E será quais serão os resultados disso? Nada resta se não esperar para ver, e opinar sempre, é claro!




[2] JAKOBS, Günter, e MELIÁ, Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 62.

Um comentário: