sexta-feira, 7 de junho de 2013

A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

O presente artigo busca chamar a atenção para o recrudescimento penal, que caminha ao lado de mudanças que ocorrem na sociedade e das novas formas de violência que surgem com elas. Ele já foi publicado em vários sites, e é claro que eu não poderia deixar de compartilhar aqui com vocês. Espero que gostem!



Introdução

O Direito Penal é um instrumento do Estado de proteção a bens jurídicos de estrema importância. Consiste num órgão controlador e fiscalizador das relações sociais, e, portanto, deve acompanhar suas constantes mudanças para que seja eficiente na proteção dos direitos humanos por ele resguardados.

E para acompanhar este avanço expansionista, não raramente ocorre o processo conhecido como Punitivismo, que se dá:

"(...) com a introdução de normas penais novas com o intuito de promover sua efetiva aplicação com toda firmeza, isto é, verificam-se processos que conduzem a normas penais novas para serem aplicadas, ou se verifica o endurecimento das penas para normas já existentes."[1]                     

O fragmento seguinte - de Bitencourt - compendia o que será tratado no presente artigo:

"A violência indiscriminada está nas ruas, nos lares, nas praças, nas praias e também no campo. Urge que se busquem meios efetivos de controlá-la a qualquer preço. E para ganhar publicidade fala-se em criminalidade organizada – delinqüência econômica, crimes ambientais, crimes contra a ordem tributária, crimes de informática, comércio exterior, contrabando de armas, tráfico internacional de drogas, criminalidade dos bancos internacionais -, enfim, crimes de colarinho branco. Essa é, em última análise, a criminalidade moderna que exige um novo arsenal instrumental para combatê-la, justificando-se, sustentam alguns, inclusive o abando de direitos fundamentais, que representam históricas conquistas do Direito Penal ao longo dos séculos."[2]

Fatores históricos que determinaram a expansão penal


O Direito Penal é um instituto bastante antigo e já passou por diversas mudanças para se compatibilizar com os anseios das sociedades que tutela. São vários os motivos que geraram tais mudanças, como a ocorrência de guerras, alterações nas formas de governos, mudanças de sistemas econômicos, etc.                              

No presente estudo, toma-se como marco inicial a Revolução Industrial, que trouxe as mais significativas mudanças na estrutura da sociedade brasileira. Com ela, a sociedade que era basicamente rural migrou de forma desordenada para as cidades e passou a realizar atividades laborais voltadas para a produção, em meio a uma grande competitividade e a precárias condições de vida.

Nesta época, o Brasil já era marcado por fortes desigualdades sociais. Pois possuía uma economia baseada na concentração de propriedades rurais (latifúndios) nas mãos de poucos, com a utilização da mão de obra braçal da grande maioria, que era pobre e desprovida de patrimônio, à qual só restava trabalhar nas terras alheias e viver de forma miserável.

Com a chegada da tecnologia nos campos, o trabalho braçal passou a ser substituído pela mecanização, o que obrigou muitos trabalhadores a irem para as cidades em busca de empregos e melhores condições de vida. No entanto, isso ocorreu de forma desorganizada e acelerada, o que gerou péssimas conseqüências sociais.

Ao chegar à zona urbana, a população humilde foi, novamente, excluída, pois as cidades não tinham capacidade de receber os novos habitantes. Assim, estes foram se instalando nas zonas periféricas, onde não havia estrutura física habitacional - saneamento básico, segurança, enfim, recursos essenciais para moradia adequada. O resultado inevitável disso foi o surgimento de um elevado índice de criminalidade e violência nas periferias das cidades, que perduram ainda hoje.

Também, a evolução dos meios tecnológicos e de comunicações ampliou a competitividade, o que levou diversos indivíduos com menos profissionalização à marginalização e à delinqüência, especialmente a patrimonial.

Também não se pode olvidar dos resultados negativos causados pelos excessos praticados pelos meios de telecomunicação, que fomentaram as incertezas quanto aos reais riscos que ameaçavam os indivíduos, por meio da divulgação de notícias com demasiado sensacionalismo.

Para atrair mais a atenção dos telespectadores, a mídia fazia repercutir uma idéia maior de perigos que os realmente existentes, o que gerou fortes dúvidas sobre qual informação realmente correspondia à realidade e quais acontecimentos narrados eram verídicos.

Vale ressalvar que a imprensa - notadamente a sensacionalista - ainda hoje, figura como parte integrante das agências penais, etiquetando os criminosos e criando a sensação de alarde social, de total insegurança.

Notícias de âmbito regional são ‘nacionalizadas’ de maneira mítica, como forma de legitimar toda a ação policialesca estatal e inquinar o sentimento de revolta contra os ‘criminosos’. Como conseqüência,

"(...) tais ações reproduziriam a crença no sistema penal como único meio eficaz de combate à criminalidade, logrando, entre outros efeitos, a criação de demandas às agências internacionais de controle, a deterioração dos valores ligados aos direitos humanos e suas garantias e a promoção de fratura artificial da sociedade (bem versus mal)."[3]  

Assim foram os movimentos de Lei e Ordem, que remontam suas origens à década de 60, como meios de combate à contracultura e reivindicação dos princípios basilares éticos, morais e cristãos da sociedade, apontando novamente o crime como patologia social e o criminoso como o causador desta.

Tais movimentos eram opostos ao abolicionismo penal, porquanto estimulavam uma maior severidade das penas, bem como defendiam a essencialidade delas para o funcionamento social. E, para que fosse possível reprimir violentamente as condutas criminosas, o Estado utilizou-se da mídia como instrumento de legitimação de suas ações, inculcando no senso comum a idéia de perigo constante e iminente, que só poderia ser afastado pela efetiva ação estatal, o que legitimou a ‘flexibilização’ dos direitos fundamentais e o recrudescimento do sistema penal material.

Com isso, o Direito Penal de ultima ratio ganhou novos contornos, tornando-se simbólico - que procura gerar uma sensação de satisfação à sociedade quando os índices de criminalidade aumentam - e, quiçá, de prima ratio. Acerca do tema, pontifica Bitencourt que:

"(...) todo esse estardalhaço na mídia e nos meios políticos serve apenas como ‘discurso legitimador’ do abandono progressivo das garantias fundamentais do direito penal da culpabilidade, com a desproteção de bens jurídicos individuais determinados, a renúncia dos princípios da proporcionalidade, da presunção da inocência, do devido processo legal etc., e a adoção da responsabilidade objetiva, de crimes de perigo abstrato, [...]. Na linha de ‘lei e ordem’, sustentando-se a validade de um Direito Penal Funcional, adota-se um moderno utilitarismo penal, isto é, um utilitarismo dividido, parcial, que visa somente à ‘máxima utilidade da minoria’, expondo-se, conseqüentemente, às tentações de autolegitimação e a retrocessos autoritários, bem ao gosto de um Direito Penal máximo, cujos fins justificam os meios e a sanção, como afirma Ferrajoli, deixa de ser ‘pena’ e passa a ser ‘taxa’."[4] 

No Brasil, o movimento repercutiu por meio do Golpe Militar de 1964, cuja função era um controle social voltado para eliminação do crime através de agências repressivas, em virtude da ideologia da Segurança Nacional, que, pela visão bifacetada da Guerra Fria forçava pelo Estado de Exceção.

Ainda, o aumento da velocidade dos meios tecnológicos diminuiu as distâncias físicas presentes entre diferentes Estados, o que viabilizou uma maior integração entre povos e culturas, e trouxe o processo da Globalização econômica, a qual eliminou as barreiras alfandegárias e, com isso, permitiu um trânsito mais efetivo de pessoas, capitais, serviços e mercadorias.

Com isso surgiram novas formas de criminalidade, como as realizadas por meio da informática e da Internet, dentre as quais se destaca a econômica - modalidade delitiva à qual se tem atribuído os maiores resultados de danos causados à sociedade - que, num breve apanhado, tem como finalidade a obtenção de lucros, apesar de também colocar em risco outros bens juridicamente tutelados.

"Assim, ' faz tempo que a investigação criminológica já demonstrou que a criminalidade econômica, objetivamente, supera a criminalidade tradicional contra o patrimônio, tanto no grau de lesividade social como na produção de danos materiais e imateriais (...)'"[5]

Dentre os novos [6] delitos também se destaca a modalidade conhecida por macrocriminalidade, que é representada por crimes como o terrorismo, o narcotráfico ou a criminalidade organizada, esta última sendo especialmente voltada para o tráfico de moedas, de armas, de pessoas para prostituição ou de crianças para adoção, além de outros legalmente previstos pelo ordenamento.

As formas contemporâneas de criminalidade podem ser chamadas de criminalidade organizada, criminalidade internacional ou ainda, criminalidade dos poderosos, sendo que esta última denominação advém do fato de que tais crimes são cometidos por pessoas favorecidas social e economicamente, e possuidoras de elevado status social.

Ou seja, os novos delitos também trouxeram novos tipos de criminosos – que pertencem a classes sociais favorecidas e praticam delitos de ordem econômica dentro de sua própria esfera profissional - visto que, antes, os criminosos eram predominantemente ligados a delitos patrimoniais (roubo, furto, etc.) e pertenciam às classes economicamente desfavorecidas, bem como possuíam um grau de instrução bastante inferior e não tinham especificação para atividade laboral (vulgarmente conhecidos como “ladrões de galinhas”).

Outro fator que contribuiu, e ainda contribui, com o aumento da criminalidade foram os movimentos de imigração interestaduais, que ocorrem com grande freqüência, principalmente para países desenvolvidos.

O motivo é que os estrangeiros que mudam de seus países, influenciados pelo sistema capitalista e com objetivo de crescimento econômico, sofrem com as diferenças culturais existentes entre seu país de origem e o lugar onde estabelecem seu novo domicílio.

Isso porque, mesmo que a similaridade do modo de vida seja uma evidente característica da globalização, os países mantêm seus aspectos e crenças peculiares, aos quais os estrangeiros se apegam e sofrem por terem que deles se desvincular para melhor se adaptarem ao novo habitat. 

Ademais, grande parte dos países desenvolvidos não reconhece os imigrantes como cidadãos. Assim, estes são tratados de forma desigual, além de sofrerem uma forte discriminação social. Todos esses fatores fomentam a violência, a marginalização e a criminalidade.

Nesse sentido, leia-se:

"As sociedades pós- industriais, com efeito, tendem a integração supranacional, mas se atomizam em seu interior; sofrem um processo crescente de desvertebração. Por outro lado, as formas de vida são cada vez mais homogêneas: mas existem sérios indícios de que, em tensão com o anterior, os grupos humanos tendem a agarrar-se a certos elementos culturais. A tensão entre integração e atomização, homogeneização e diversidade ou multiculturalidade é desde logo criminógena: produz violência."[7]

Os criminosos modernos, além de pertencerem a diferentes grupos sociais, - como já mencionado – também praticam crimes com habitualidade e profissionalidade, o que gera uma insegurança constante entre os cidadãos. A freqüência com que eles atuam traz uma instabilidade social permanente.

Todos os cidadãos se sentem em risco, mesmo a vítima que tenha sofrido um ataque, pois ela não está ilesa de sofrer nova agressão - assim como um réu pode ser reincidente na prática de um crime, a vítima pode ser alvo de nova violência.

Essa insegurança foi fator determinante para que repercutisse o ideal social pela obtenção de um meio eficaz para garantir a volta da segurança; as pessoas buscam sentir se livres ou ao menos mais protegidas contra ameaças a sua vida e a seu patrimônio. Para tanto elas se apóiam no poder de controle do Estado, com a crença de que este órgão soberano possa conter os riscos que as assombram. É nesse sentido que se pode falar do papel simbólico exercido pelo Direito Penal.


Críticas ao fenômeno da expansão

A intervenção estatal, feita por meio do Direito Penal é fruto do medo da violência - que assola as sociedades modernas - na medida em que, quase sempre, é mais fácil procurar um paliativo legislativo do que enfrentar as profundas causas que geram a criminalidade.

São diversas as críticas surgem em face ao recrudescimento da legislação brasileira na seara criminal. São expressivas as de BITENCOURT:

"Tradicionalmente as autoridades governamentais adotam uma política de exacerbação e ampliação dos meios de combate à criminalidade, como solução de todos os problemas sociais, políticos e econômicos que afligem a sociedade. Nossos governos utilizam o Direito Penal como panacéia de todos os males (direito penal simbólico); defendem graves transgressões de direitos fundamentais e ameaçam bens jurídicos constitucionalmente protegidos, infundem medo, revoltam e ao mesmo tempo fascinam uma desavisada massa carente e desinformada. Enfim, usam arbitrária e simbolicamente o direito penal para dar satisfação à população e, aparentemente, apresentar soluções imediatas e eficazes ao problema da segurança e da criminalidade."[8]

Também se posiciona contrariamente à ampliação da tutela penal como mecanismo para conter a insegurança social o autor PAULO QUEIROZ:

"O Estado não pode intervir quão violentamente na vida dos cidadãos a pretexto de infundir um sentimento de segurança jurídica, pois a intervenção penal, por encerrar as mais contundentes e lesivas manifestações sobre liberdade das pessoas, não pode ter lugar senão em situações de absoluta necessidade e adequação. O direito penal não pode se valer, enfim, de simbolismos que, iludindo os seus destinatários por meio de uma solução barata e, não raro, demagógica (a edição de leis penais ou o aumento de seu rigor), as raízes dos problemas sociais subjacentes a toda manifestação delituosa, sobretudo quando se sabe que a intervenção penal é a intervenção sintornatológica e não etiológica, que atinge os problemas sociais em suas consequências e não em suas causas. Daí se dizer que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significa mais presos, mas não necessariamente menos delitos (JEFFERY)."[9]

Em consonância ao papel simbólico do sistema penal, tem ocorrido uma tendência pelo enveredamento das punições do poder estatal à esfera penal.

"Já que diante do Direito Civil compensatório, o Direito Penal aporta dimensão sancionatória, assim como a força do mecanismo público de persecução de infrações, algo que lhe atribui uma dimensão comunicativa superior (...)"[10]                    

Assim, ele tem deixado de relegar aos demais ramos do Direito a relevante missão de combate à criminalidade e garantia da paz pública.

Em suma, as críticas referem-se à mitigação ao princípio da intervenção mínima do Direito penal, também conhecido como ultima ratio, o qual possui grande importância na garantia aos direitos individuais. Por tal princípio entende-se que a intervenção estatal na esfera dos direitos dos cidadãos deve ser sempre a mínima possível no Estado democrático, com o intuito de permitir o livre desenvolvimento dos cidadãos.

O mesmo ocorre com o princípio da subsidiariedade, que considera o Direito penal como um remédio subsidiário, devendo ser reservado apenas para situações em que outras medidas (sanção penal, administrativa, civil, etc.) não são eficazes para diminuir a violência.

Ambos os princípios, juntos orientam e limitam o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se faz legítima se constituir meio imperativo para proteger determinado bem jurídico.

Assim, se outras formas de sanção ou meio de controle se fizerem satisfatórios para a tutela desse bem, a criminalização de condutas que o perturbem é inadequada e não recomendada, uma vez que o sistema penal representa a mais forte agressão estatal aos direitos dos cidadãos, já que suas punições são capazes de restringem direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal em seu artigo 5º, tais como a liberdade de locomoção e a privacidade.

Ainda se discute o problema acerca da criação de tipos penais de perigo abstrato em prejuízo de crimes de dano e de perigo concreto. Podendo mencionar a constante opção do uso de leis penais em branco, que ferem outro princípio constitucional: o da legalidade estrita.

Enfim, uma vez que a composição deste novo sistema penal – ampliado - segue sem observar princípios basilares do Estado Democrático de Direito, surte como efeito a diminuição de garantias individuais frente ao poder punitivo do Estado. O que pode gerar um desequilíbrio, sem precedentes, ao sistema democrático de Direito.

Enfim, acerca das vastas mudanças ocorridas no ordenamento jurídico penal podem ser feitas diversas pesquisas, pois a dinâmica social e o movimento expansionista da política criminal continuam.





[1] JAKOBS, Günter, e MELIÁ, Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 60.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial (vol. 4). 3. ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 237/238.
[3] CARVALHO, Salo. A política criminal de drogas no Brasil (estudo criminológico e dogmático). 4. ed. ampliada, atualizada e com comentários à Lei 11.343/06. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 45.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial (vol. 4). 3. ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 241.
[5]GRACIA MARTIN, Luis. O horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Série Ciência do Direito Penal Contemporânea. Traduzido por Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 127/128.
[6] Fala-se em “novos” delitos, uma vez que, apesar de existentes em sociedade desde longínqua data, somente a partir do momento delineado que passaram a ter contorno e tratamento penal recrudescido.
[7] SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal. Traduzido por Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 100.
[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial (vol. 4)dos crimes contra os costumes até dos crimes contra a fé pública. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 237.
[9] QUEIROZ, Paulo. Funcões do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. 2. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 53
[10] SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal. Traduzido por Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 141.

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